
Há autores que escrevem para contar, ainda que por meio da ficção, suas histórias mais pessoais. Acho válido, acho bonito. Mas fico feliz em saber que existem aqueles que escrevem para dar vida a quem viveu tão pouco. Maryse Condé se encaixa nessa segunda categoria.
O premiado Eu, Tituba é interessante porque, além de ser um romance com bases históricas, tem um pouco de Condé. Dá para sentir nas entrelinhas que a autora colocou sua dor e a de tantas outras mulheres negras na dor da personagem principal.
Eu, Tituba veio para tentar reparar o que a história tão egoisticamente deixou no esquecimento: a vida de uma figura de quem pouco sabemos. E o que sabemos vem dos registros que a marcaram para sempre com um simples adjetivo: bruxa.

Não é sobre Salem
Uma das minhas grandes expectativas em relação ao livro era o contexto histórico. Os famosos julgamentos das bruxas de Salem sempre me chamaram a atenção: primeiro pelo horror das perseguições; e segundo porque esse período, por mais grotesco que tenha sido, serve agora de estudo para levantar reflexões e debates sobre a misoginia nas sociedades ao longo dos séculos.
Eu, Tituba passa muito pouco pelos julgamentos do fim do século XVII. As condenações acontecem no livro, mas não da maneira como eu tinha imaginado. Isso acabou me decepcionando um pouco, embora eu entenda agora que Condé nunca teve a intenção de falar de todas as mulheres condenadas à forca. A protagonista é Tituba.
Um passado para Tituba
Tituba foi uma das mulheres condenadas no que ficou conhecido como a maior caça às bruxas da história. Junto de Sarah Osborne e Sarah Good, a escrava virou uma das principais figuras relacionadas aos julgamentos. No entanto, pouco se sabe dela.
Nossa história, do mundo real, falhou com Tituba. Tendo sido escrava, pouco importava para os registros quem era, de onde vinha e o que aconteceu a ela nos momentos que antecederam seu trágico fim.
Condé não aceitou isso e resgatou Tituba. Usando uma linguagem direta e pouco floreada, mas muito bem trabalhada, a autora deu uma história de vida para a mulher, com direito a um passado e a uma trajetória de luta constante que teve início antes mesmo de seu nascimento e terminou somente no dia da sua execução.
A Tituba do livro tem uma grande personalidade; mesmo aprisionada, não abaixa a cabeça. Até nos momentos de fraqueza mostra que tem força. Isso deixa a leitura agridoce, pois, ao mesmo tempo que dói acompanhar todas as desgraças da personagem principal, é emocionante ver que suas crenças são maiores que as adversidades do mundo e a violência do ser humano. Condé pode até ter inventado sua heroína dos sonhos, e há chances de a Tituba real ter tomado decisões e atitudes bem diferentes do que é retratado no livro, mas acho que essa nova versão prevalecerá a partir de agora.

Misticismo
Apesar de criar uma nova abordagem (mais humana e menos fantasiosa) sobre o que é ser bruxa, o livro traz uma aura mística muito bem-vinda.
Em muitos momentos, os mortos são o único amparo de Tituba. Eles guiam, aconselham, tiram-na um pouco da esfera da solidão. Estão por toda parte, vivos em memória e espírito até onde as crenças permitem.
Ler ou não ler?
Eu, Tituba é um livro difícil de enfrentar: ele não vai aliviar a violência da escravidão ou assegurar que o desfecho seja menos triste. Sabemos como a história termina.
Mas imagino o propósito da autora de escrever uma “versão inventada dos fatos”, e acho lindo. Condé criou uma história forte, madura e vívida para os leitores. O livro não vai tirar todo o sofrimento pelo qual Tituba passou; isso nada poderá remediar. Porém, eterniza nas páginas seu nome e a liga a um passado, ainda que hipotético, ao qual pode pertencer.
– Não se aflija, Tituba! Você sabe disso, a má sorte é a irmã gêmea do negro! Ela nasce com ele, vai para a cama com ele, contesta o mesmo peito murcho. Ela come o peixe do seu cozido. Ainda assim, o negro resiste! E aqueles que querem vê-lo desaparecer da face da terra estarão sempre lá. Ainda assim, você será a única a sobreviver!