
Se Cem Anos de Solidão não me convenceu de que Gabriel García Márquez tinha uma fonte inesgotável de imaginação, Do Amor e Outros Demônios calou todas as minhas suspeitas. Fico fascinada com a habilidade do autor de criar toda uma história a partir de pequenos fatos; de construir uma personagem apenas com o nome e a causa da morte para começar.
Do Amor e Outros Demônios, ainda que pequeno, é um livro completo. Rica em detalhes que só Gabo era capaz de juntar, a obra me fez relembrar com muito carinho da narrativa do escritor, por vezes fantasiosa, em outros casos real até demais.
Inesperada inspiração
Gabo escreveu o livro após ser designado para cobrir a remoção das criptas funerárias do convento de Santa Clara, em 1949. Durante a reportagem, o escritor se surpreendeu com a história do túmulo de uma marquesa menina, cujos cabelos se estendiam até o chão. Após descobrir que a garota havia morrido de raiva, Gabo percebeu que tinha em mãos uma história “pronta”.

O livro é uma memória das lendas que a avó materna do colombiano contava a ele. Mais do que uma mera ficção, Do Amor e Outros Demônios reconstrói a Colômbia como colônia da Espanha, com críticas sobre a forma como a sociedade daquela época era organizada e mais.
Dinâmica social da colônia
Não demora muito para nutrirmos um senso de injustiça quanto à dinâmica social em que a trama se desenrola. No livro, Gabo faz questão de destacar a maneira como a colônia era gerida por um sistema escravocrata e racista. Essa questão é abordada ao longo de toda a história, desde a infância de Sierva María, renegada pelo pai marquês e criada pelos escravos, até a decadência da casa-grande.
A influência religiosa também é um aspecto marcante de Do Amor e Outros Demônios, uma vez que determina o destino da menina Sierva María, mandada para o convento por acreditarem que um demônio a possuiu.
Mais uma crítica é feita por Gabo, desta vez à imposição da religiosidade cristã sobre as demais manifestações religiosas. Ao longo de todo o livro, fica claro que pessoas como a abadessa e o bispo são iludidos pelo temor daquilo que desconhecem. Como não compreendem os rituais e as crenças de outros povos, dos quais Sierva María cresceu aprendendo a gostar, parece a eles mais fácil permanecerem no fanatismo e culparem as forças ocultas.
Os demônios da história
Como todo livro do autor, acho que podemos extrair informações além daquelas que estão na superfície, que dão o contexto mais óbvio.
Nos primeiros capítulos, o marquês ganha bastante enfoque, o que me intrigou até o fim da leitura. Dentre todos os personagens, acredito que ele seja o mais atormentado.
Não é uma, mas duas vezes que o Gabo descreve o pai como uma pessoa medrosa. Soma-se a isso o fato de que ele renegou a filha nos primeiros anos e decidiu mandá-la para o convento como último recurso para salvá-la – escolha da qual nunca se recuperou. Os demônios interiores da dúvida e do arrependimento envolvem o marquês do início ao fim.
E o amor? Existe uma romantização problemática sobre a relação entre o padre Cayetano Delaura, de quase 40 anos, e a menor de idade Sierva María. Encontrei algumas pessoas criticando este aspecto do livro, que é realmente ruim, mas devo lembrar que o problema é recorrente nas obras do Gabo. Nem Cem Anos de Solidão saiu ileso disso. Se forem condenar Do amor e Outros Demônios, devem condenar a obra-prima do autor também.
Felizmente, interpretei o “amor” do título vindo do pai. No desespero – e por amor incondicional –, o marquês entregou a filha aos cuidados de estranhos e nunca mais sossegou.

Ler ou não ler?
Não tenho experiência para falar das obras do Gabo. Li apenas três. Porém, teria começado por Do Amor e Outros Demônios se pudesse voltar no tempo. É um livro pequeno, com menos de 200 páginas, que possui toda a beleza das descrições do escritor.
É o realismo mágico de Gabo nos agraciando.
Delaura tinha sonhado que Sierva María estava sentada defronte de uma janela que dava para um campo coberto de neve, arrancando e comendo uma a uma as uvas de um cacho que tinha no colo. Cada uva arrancada tornava a brotar no cacho. No sonho, era evidente que a menina estava há muitos anos defronte daquela janela infinita tentando acabar o cacho, e que não tinha pressa, por saber que na última uva estava a morte.
Resenha ótima. Vou atrás desse livro!
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Obrigada! Espero que a leitura valha a pena para você tanto quanto valeu para mim 😉
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