
Quando começo a formar uma imagem do livro No Jardim do Ogro na minha cabeça, Canção de Ninar acaba ofuscando o irmão mais velho. Quando penso em falar sobre o que achei de No Jardim do Ogro, as passagens mais marcantes de Canção de Ninar inundam meus pensamentos.
Acho que isso é esperado de qualquer leitor que acaba consumindo mais de um livro do mesmo autor. No caso da Leïla Slimani, especialmente, é importante colocar suas duas únicas obras publicadas no Brasil lado a lado e apontar um favorito. Porque, para ser bem honesta, não vale a pena ler todos.
Isso não quer dizer que não gostei desse segundo livro. Apenas notei que certos assuntos abordados nele são parecidos com o que vi em Canção de Ninar. Até mesmo a atmosfera parece familiar, embora cada um tenha suas respectivas temáticas centrais.

Insaciável
No Jardim do Ogro é sobre Adèle, uma jornalista que vive em Paris com o marido e o filho pequeno. Ela não ama seu trabalho, mas o tem como um passatempo. Ela ama seu marido, mas não liga para o casamento. E o papel de mãe, apesar de ser gratificante, custa tempo e esforço.
Por trás do tédio da sua rotina, Adèle sente uma necessidade insaciável por sexo. Ela desmarca compromissos e mente para o marido para aplacar o vício em idas a bares à noite e encontros marcados com antigos contatos. Adèle segue uma vida dupla, até que é descoberta.
O livro poderia ser apenas sobre os impulsos sexuais de uma pessoa, mas, como em Canção de Ninar, existem camadas de interpretação. Há sempre a possibilidade de a história ser somente o que está na sinopse, porém, quero acreditar que a autora quis ir além – além dos vícios, além da tentação.
Casamento engessado
Não demora muito para perceber a falta de comunicação entre Adèle e seu marido. Essa falta de comunicação não é no sentido de que eles são frios um com o outro ou estão vivendo uma vida conjugal de fachada. A impressão que passa é que os dois (especialmente Adèle) estão vivendo fases diferentes do casamento.
Gosto do fato de Slimani não enfeitar as coisas. Isso influencia completamente a construção da personagem e até o tom da narrativa, que passam a ideia de rigidez característica de Canção de Ninar.
Adèle admite ver às vezes o filho como um fardo e o marido como uma decisão errada. Adèle deixa claro que se sente frustrada com o rumo que sua família está tomando. Ela sente a monotonia da rotina, a posição de boa esposa e mãe que empurram em sua direção como um papel que precisa desempenhar. E é essa obrigação, tão não bem-vinda, que alimenta a vontade de se sentir mais uma vez livre e no controle da sua vida.

Ler ou não ler?
No Jardim do Ogro não vai agradar todo mundo. Acho que ganhar o público não foi a intenção da autora quando resolveu escrever o livro. A história não possui o mesmo apelo de Canção de Ninar, seja por ausência de mistério, falta de um grande e aguardado acontecimento (no caso de Canção de Ninar, um assassinato) ou insipidez dos personagens.
Esse não é “o” livro – nem da vida e nem dentre os trabalhos de Slimani. Por outro lado, é interessante ver como a narrativa se desenrola. A história muda completamente lá pelo fim. Para quem começou refém dos seus próprios desejos, Adèle termina aprisionada de outras maneiras.
Esperando seu marido sair do banheiro, ela desdobra um papel e começa uma lista. Coisas a fazer, a recuperar, sobretudo. Ela tem as ideias claras. Vai limpar o cotidiano, livrar-se, uma por uma, de suas angústias. Vai cumprir seu dever.